No antigo tribunal grego, a ampulheta ditava quanto tempo os advogados possuíam à disposição para aduzirem os próprios argumentos de defesa e de acusação. Saber dosar o tempo, ou seja, saber contar quanta areia se gastava numa exposição a favor ou contra uma determinada tese, era um sinal de posse autêntica de uma técnica que tanto podia matar uma vida quanto salvá-la. Imaginemos uma situação um pouco se- melhante transportada para o século XVII português, mais precisamente para um canto esquecido e poeirento da oficina de um caldeireiro, onde dois relógios apresentam as próprias defesas e justificações por se encontrarem ali. Com este encontro casual e sem horário marcado se dá início à extraordinária «comédia do tempo». Em boa verdade, trata-se de uma espécie de peça teatral cadenciada e joeirada pela areia temporal da crítica, da sátira e da moral. Autor, encenador e, por vezes, ponto desta pièce é D. Francisco Manuel de Melo. Queremos nortear a análise do primeiro apólogo sobretudo pelo conceito de tempo tomado de vários pontos de fuga. Começaríamos por afirmar que neste apólogo D. Francisco Manuel de Melo emprega múltiplos jogos de palavras, de trocadilhos e de outras estratégias linguísticas como se estas fossem secções cro- nológicas, isto é, como se cada uma delas servisse de instrumento para ser usado no momento exato em que o espírito crítico do leitor se encontra pronto e mais idóneo para perfecionar o objetivo que o autor se propõe. Todo o apólogo primeiro, em que se dá a interlocução de um relógio citadino com um aldeão, poderia então ser lido como uma metáfora do tempo, isto é, como uma exposição crítica das fases da vida humana, e quem melhor para cronometrar senão dois relógios?

D. Francisco Manuel de Melo, autor e ator da “comédia do tempo”

Maria da Graça Gomes de Pina
2013

Abstract

No antigo tribunal grego, a ampulheta ditava quanto tempo os advogados possuíam à disposição para aduzirem os próprios argumentos de defesa e de acusação. Saber dosar o tempo, ou seja, saber contar quanta areia se gastava numa exposição a favor ou contra uma determinada tese, era um sinal de posse autêntica de uma técnica que tanto podia matar uma vida quanto salvá-la. Imaginemos uma situação um pouco se- melhante transportada para o século XVII português, mais precisamente para um canto esquecido e poeirento da oficina de um caldeireiro, onde dois relógios apresentam as próprias defesas e justificações por se encontrarem ali. Com este encontro casual e sem horário marcado se dá início à extraordinária «comédia do tempo». Em boa verdade, trata-se de uma espécie de peça teatral cadenciada e joeirada pela areia temporal da crítica, da sátira e da moral. Autor, encenador e, por vezes, ponto desta pièce é D. Francisco Manuel de Melo. Queremos nortear a análise do primeiro apólogo sobretudo pelo conceito de tempo tomado de vários pontos de fuga. Começaríamos por afirmar que neste apólogo D. Francisco Manuel de Melo emprega múltiplos jogos de palavras, de trocadilhos e de outras estratégias linguísticas como se estas fossem secções cro- nológicas, isto é, como se cada uma delas servisse de instrumento para ser usado no momento exato em que o espírito crítico do leitor se encontra pronto e mais idóneo para perfecionar o objetivo que o autor se propõe. Todo o apólogo primeiro, em que se dá a interlocução de um relógio citadino com um aldeão, poderia então ser lido como uma metáfora do tempo, isto é, como uma exposição crítica das fases da vida humana, e quem melhor para cronometrar senão dois relógios?
2013
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